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ABL na mídia - O Tempo - Protagonismo negro avança na cultura brasileira, mas obstáculos permanecem

 

Embora seja perceptível que, sobretudo na última década, políticas públicas inspiradas e pressionadas pelo movimento negro tenham aberto caminhos para que mais artistas, intelectuais, pesquisadores e personagens negros conquistassem espaço, legitimidade e centralidade em diferentes áreas da produção cultural, é também evidente que ainda há muito a ser feito. Basta lembrar que, em 128 anos de história, só agora a Academia Brasileira de Letras (ABL) passa a ter uma cadeira ocupada por uma mulher negra: Ana Maria Gonçalves, autora do consagrado “Um defeito de cor”, que em seu discurso de posse agradeceu à sua ancestralidade, “fonte inesgotável de conforto, fé, paciência e sabedoria”.

É diante deste cenário cultural ainda árido para pessoas negras que a atriz Jeniffer Dias reconhece, em entrevista a O TEMPO, lidar com o constante temor de ter sua trajetória escanteada – e, por isso, admite ter grande dificuldade de recusar papéis: “Eu sempre fico com medo de não ter outra chance depois”. O temor, explica, é que venha a sofrer com o mesmo apagamento enfrentado pelos irmãos João e Arthur Timótheo da Costa, dois pintores negros revistados em uma peça estrelada por Jeniffer, que foram precursores do modernismo no Brasil, mas cujas trajetórias e legados foram ignorados pela história oficial.

Diga-se, além da baixa representatividade, há problemas persistentes em relação à qualidade dessas representações, como examina o pesquisador em teledramaturgia Reynaldo Maximiano, tomando como exemplo o tratamento dispensado aos personagens negros e negras nas refilmagens de “Vale Tudo”. Em um levantamento, o estudioso analisou não apenas a presença numérica de atores negros, mas o desenvolvimento dramático de seus personagens, constatando que, embora tenha havido um ganho quantitativo – em 1988, a novela contava com dois atores negros, Zeni Pereira e Fernando Almeida, número que saltou, em 2025, para 20 –, isso não significou um distanciamento dos estereótipos.

“Eu fiz essa análise considerando o objetivo desses personagens na trama e os espaços onde circulam. A maioria não tinha objetivos definidos”, examina, acrescentando que o mais grave é o caso da protagonista Raquel Acioli, vivida por Taís Araujo, exposta a altos e baixos financeiros, com uma resiliência incomum para começar do zero: “Ela, a mocinha, foi esvaziada até diante de seu contraponto imediato na trama, Odete Roitman, a vilã”.

Mas, mesmo casos problemáticos como o da novela, agora, já não passam despercebidos. Tanto que a própria Taís Araújo admitiu, em entrevista à revista “Quem”, ter ficado frustrada com o esvaziamento da trajetória de sua personagem, que praticamente desapareceu nas semanas finais da novela. Antes disso, levou sua insatisfação à autora, Manuela Dias, o que gerou um atrito – e, depois, uma troca de queixas formais ao compliance da emissora.

Segundo a imprensa especializada em TV, Taís relatou que vinha sendo pressionada por entidades do movimento negro, decepcionadas com o tratamento dado à protagonista. Ela então procurou a autora do remake e, depois, o compliance da Globo com o objetivo de “ajudar a empresa a discutir a forma como mostra pessoas negras em novelas”. Pouco depois, veio a declaração pública. Manuela Dias, então, formalizou queixa contra a atriz, alegando quebra do código ético da empresa.

Representações caricatas são agora alvo de crítica

O caso de Raquel Acioli é especialmente dicotômico: afinal, antes da estreia da nova versão da novela, a escolha de Taís Araujo para o papel – vivido originalmente por Regina Duarte – foi celebrada como um acerto, pois parecia simbólico que uma mulher trabalhadora, de origem popular, fosse interpretada por uma atriz negra. Com o desenvolvimento da trama, então, surgiram os tantos problemas. E, claro, esta não é de hoje que as tensões em torno da representação racial emergem na cultura brasileira.

Em 2011, por exemplo, o país debateu o embranquecimento de Machado de Assis em uma campanha da Caixa Econômica Federal que comemorava os 150 anos da instituição. As críticas à peça publicitária logo se espalharam pelas redes e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir) chegou a divulgar uma queixa formal. Após a repercussão, o banco retirou o comercial do ar e pediu desculpas.

Anos antes, porém, casos semelhantes não chegavam a provocar tamanha reação. É o que se viu em 1998, quando Matheus Nachtergaele foi escalado para interpretar Cintura Fina na minissérie Hilda Furacão – outro exemplo de embranquecimento e apagamento de personagens históricos negros.

Se hoje reações como a que levou à retirada da campanha da Caixa do ar são mais rápidas e contundentes, isso não acontece por acaso. Para a pesquisadora e curadora em cinema Tatiana Carvalho Costa, esse tipo de resposta pública é parte de um processo longo, que vem ganhando corpo graças à atuação constante do movimento negro.

Citando pesquisas da ex-ministra da Igualdade Racial Nilma Lino Gomes, ela identifica nesse fenômeno a expressão do chamado “Movimento Negro Educador”. “Estamos falando de um movimento que assume um papel mobilizador de tecnologias sociais para a mudança, que é também um grande educador da sociedade, que a faz olhar para si mesma a partir dessas ferramentas para combater o racismo”, afirma.

Segundo ela, muitos dos avanços que vemos hoje – inclusive a capacidade de a sociedade acolher melhor questionamentos sobre representatividade e apagamento – são fruto dessa atuação contínua. “Há décadas lutamos para desconstruir estereótipos. Então, existe hoje um letramento maior de parte da sociedade para fazer esses enfrentamentos”, aponta. Mas Tatiana pondera: “Isso tudo é extraordinário, mas ainda é pouco se olharmos a discrepância do poder econômico”. E cita o caso da Globo, que, diante da polêmica sobre Vale Tudo, “optou por manifestar um apoio tácito à autora”. “Ou seja, estamos sempre esbarrando na lógica desse poderio econômico”, constata.

Momento de inflexão

Para Tatiana Carvalho Costa, presidenta da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) no biênio 2023-2025, vivemos hoje uma fase paradoxal: “Há um avanço importante, mas há distorções na representação”. O problema, afinal, também é estrutural. “O avanço das ações afirmativas na cultura, no audiovisual, sobretudo no cinema, é muito importante, mas precisa vir acompanhado de maior conscientização da sociedade e de uma melhor preparação de agentes públicos para operacionalizá-lo”, analisa. Isso porque, segundo ela, o cenário ainda é frágil e permeável a abusos. “Há muitos caminhos para fraude e violência política”, alerta, mencionando, por exemplo, casos de autodeclaração racial fraudulenta e descumprimento de instruções normativas que exigem distribuição mínima de recursos para realizadores negros em editais públicos.

Matéria na íntegra: https://www.otempo.com.br/entretenimento/2025/11/20/protagonismo-negro-avanca-na-cultura-brasileira-mas-obstaculos-permanecem.amp

24/11/2025