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ABL na mídia - Vida Simples - Ana Maria Gonçalves escreve novo capítulo da memória negra no Brasil

 

A eleição da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, autora de “Um defeito de cor”, para a cadeira 33 da ABL (Academia Brasileira de Letras) vai muito além da representatividade. A primeira mulher negra a atingir a imortalidade da Academia também simboliza a conquista de todas aquelas que foram e ainda são invisibilizadas em 128 anos de instituição, como Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus.

Essa ocupação de espaço, mesmo que de forma tardia, não deixa de ser um grande motivo de celebração e emoção. Em entrevista à Vida Simples, a professora, pesquisadora e curadora da FLIMA (Festa Literária da Mantiqueira), Maria Carolina Casati, falou sobre seus sentimentos ao receber a notícia.

“Fiquei muito, muito feliz. Profundamente emocionada. Sabe aquela sensação de coração quentinho? De finalmente perceber que algo maior do que nós está acontecendo? Mas que, ao mesmo tempo, está ligado a todas nós?”

No mesmo dia da divulgação da eleição, a FLIMA anunciou que Ana Maria Gonçalves será a autora homenageada da festa literária do ano que vem, que ocorrerá entre os dias 13 e 17 de maio, em Santo Antônio do Pinhal (SP). “Um defeito de cor” completa 20 anos de lançamento em 2026. O livro é um clássico da literatura contemporânea.

Mais do que representatividade

“Demorou só 128 anos, né? A reação também foi de assombro, mas um assombro que acalenta”, afirma Maria, que também é mulher, negra e escritora.

De acordo com ela, a palavra “representatividade” atualmente está “esvaziada”. No entanto, explica: “Representar, de fato, é poder se enxergar. É perceber que aquilo que acontece com uma de nós pode, sim, acontecer com outras também.”

“A própria Ana Maria Gonçalves disse que deseja apenas ter inaugurado, e não ter sido a única. Conceição Evaristo também fala isso. Ser a primeira é uma coisa. Ser a única, outra. Ser a primeira é importante, mas tem que puxar as outras”, acrescenta.

“É paradoxal o sentimento. A representatividade é importante, mas a gente não pode deixar cair na ideia de que somente isso dá conta das nossas existências.”

Maria também comenta sobre a importância do romance histórico “Um defeito de cor”, que ela considera o grande livro de história do Brasil ao lado de “Quarto de despejo”, da Carolina Maria de Jesus. A pesquisadora afirma que a obra foi fundamental para sua “formação intelectual, política e afetiva”.

A personagem principal do livro é inspirada em Luísa Mahin, mãe do poeta Luís Gama e que teria participado da Revolta dos Malês, movimento de escravos em busca de liberdade que ocorreu em 1835, na cidade de Salvador (BA).

“O livro contribuiu demais para as teorias que construo sobre a escrita de mulheres pretas. Para pensar a construção de pessoas pela palavra de forma elaborada, bem feita, possível, concreta e potente. Me ajudou a imaginar que talvez o que eu tenha pensado academicamente não seja uma ‘loucura’. Me deu uma ideia de: ‘o que você está falando faz sentido!’. Isso também resvala em pertencimento, representatividade, coletivo e quilombo.”

Oralidade e ancestralidade

Maria Carolina Casati faz parte do GEPHOM (Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória), da USP (Universidade de São Paulo). O espaço investe em pesquisa e reflexão sobre questões teóricas e metodológicas sobre proposição e execução de estudos em história oral e memória.

São 500 anos de Brasil. Dá para imaginar quantas histórias foram apagadas por não serem escritas. No entanto, a oralidade resiste. Aquelas histórias contadas de bisavó para avó, de avó para mãe, de mãe para filhas.

Em “Um defeito de cor”, Ana Maria Gonçalves formula um Brasil baseada em um vasto trabalho de pesquisa documental que se entrelaça com sua própria história por meio da oralidade. Aquilo que ainda não tinha sido contado. Ou melhor, registrado pela “história oficial”.

Maria afirma que a oralidade e a ancestralidade permitem “construir pessoas”. Ela ressalta que tenta fazer esse conceito “colar” no meio acadêmico, “ainda que pareça uma ideia esquisita”.

“Quando conseguimos pensar sobre nós mesmas, colocar ordem na experiência caótica da vida e nos narrar, essa versão que as pessoas escolhem contar de si é algo maravilhoso para compreendermos tanto o individual quanto o coletivo. Trabalhar com história oral, especialmente com histórias de mulheres, possibilita outra visão de mundo”, diz.

“A palavra materializa eventos e afetos, constrói lembranças e forja memórias.”

“É inevitável pensar em ancestralidade quando falamos de mulheres negras que não podiam contar histórias a não ser para ninar a Casa Grande, como diz a escritora Conceição Evaristo. Quando uma mulher negra fala de si nos seus próprios termos, estamos honrando as que vieram antes e as que estão conosco agora. Essa é a ideia de ‘escrevivência’, da própria Conceição”, acrescenta.

Para meus avós, Nola e Paulo Ana e João “Quando você segue as pegadas dos mais velhos, aprende a caminhar como eles.”

Dedicatória de ‘Um defeito de cor’

Coletividade

Em meio às conquistas e desafios diários enfrentados pelas mulheres negras, o sentido de coletividade surge como uma pedra fundamental na dinâmica da vida.

“A gente só não sucumbe porque se aquilomba. Uma segura na mão da outra”, ressalta Maria. Essa força compartilhada, de acordo com a pesquisadora, atravessa gerações e se expressa tanto na vida quanto na literatura. Para ela, a escritora Ana Maria Gonçalves é um elo nessa corrente ao representar e ser representada por outras mulheres.

“Mulheres negras só existiram e continuam existindo porque se aquilombam. E a gente precisa reproduzir isso. A relação entre as mulheres do livro é quase simbiótica. Reproduzimos isso hoje numa entrevista, numa conversa, numa mediação de leitura. A outra está aqui, logo, eu também existo.”

Para quem ainda não leu “Um defeito de cor”, Maria deixa um recado:

“Ele traz uma história do Brasil de forma acurada, específica, detalhada e bem feita. Tem que ler por isso, mas também pelo valor estético. Ele convida a entender que nossas narrativas são legítimas e que, mais do que isso, construíram um país. Você sai transformado. Seja qual for sua classe ou gênero, vai te tocar.”

Matéria na íntegra: https://vidasimples.co/cultura/ana-maria-goncalves-escreve-novo-capitulo-da-memoria-negra/

23/07/2025