Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > ABL na mídia - Valor - A busca obsessiva pela palavra certa

ABL na mídia - Valor - A busca obsessiva pela palavra certa

 

“A minha velocidade é a da canoa, remando num rio do Amazonas.” A frase é dita nesse mesmo ritmo suave pelo premiadíssimo escritor Milton Hatoum,ainda surpreso com a repercussão da sua eleição para a Academia Brasileira de Letras (ABL), no último dia 14. “Eu estava em todos os lugares, não esperava isso”, diz, comentando a cobertura da mídia. Todos os rituais o surpreenderam. Quando, numa conversa dias antes, um imortal advertiu-o de que voto secreto leva a muitas traições, ele passou noites sem dormir. Apesar da insistência de amigos, levou 15 anos para se candidatar à ABL, e no dia da eleição a Companhia das Letras, sua editora, anunciou o lançamento de “Dança de enganos” em outubro, o último livro da sua trilogia “Olugarmais sombrio”. É um romance de 800 páginas ao total, em 3 volumes, trabalhados pelo autor durante 17 anos, planejando, escrevendo, reescrevendo, corrigindo, adaptando-os aos tempos tumultuados.

“Fui esticando o tempo. Do segundo para o terceiro volume, o tempo dobrou: foram mais quatro anos corrigindo e acrescentando muitas coisas tambémemfunçãoda situaçãobrasileira.” Nascido em Manaus, de uma família de origem libanesa, Hatoum tem como um dos destaques da sua obra o retrato literário da Amazônia urbana e multicultural,marcadapelaimigraçãonoinício do séculoXX. Mas ele detesta o rótulo de escritor manauara, pois, para ele, a literatura regional já ficou para trás. “Sou um escritor latino-americano”,diz.

Hatoum é formado em arquitetura, eaherançamais visíveldessetempono seu trabalho de escritor, contista e ensaísta aparece quando prepara um romance: começa o livro pelo fim e, só ao saber o desenlace da trama e o destino de cada personagem, inicia a escrita, sempre à mão.Antes disso,faz croquis, desenhos e gráficos, como num projeto de arquitetura.E ainda escreve sobre a personalidade de cada personagem. “É uma papelada louca. Sou um flaubertiano”, declara-se, para resumir sua busca obsessiva pela palavra certa,à semelhança de Gustave Flaubert (1821- 1880), o escritor francês sempre à procura da perfeição de estilo.

“Tenho de conhecer cada personagem, como se relaciona com os outros. Mas, ao iniciar a escrita, todo esse planejamento não chega a desmoronar, mas a conclusão é de que o romance começa a existir quando você escreve. O imprevisível conta muito, a imaginação, a memória diluída e transformada em imaginação.”

Esse processo normalmente descrito como sofrimento, para ele, é puro prazer. E depois, conta, ainda reescreve tudo 10, 15, 20 vezes. Nenhum espanto, portanto, de a trilogia, iniciada em 2008, só se encerrar agora em 2025. São os livros mais autobiográficos da carreira de Hatoum, especialmente o primeiro e o segundo volumes,“A noite da espera”e“Pontos de fuga”.

Todos se passam durante a ditadura militar no Brasil, em Brasília e São Paulo, e em Paris, cidades também percorridas pelo escritor mais ou menos na mesma época de Martim, o narrador e personagem principal. Já exilado em Paris, Martim relembra os anos vividos em Brasília, para onde se mudou com a separação dos pais.

Aos 16 anos, o personagem vive a brusca solidão e a convulsão política e social na capital do país. Foi esse também o cenário político que marcou a vida de Hatoum: ele vai estudar em Brasília, lá tem amigos presos e desaparecidos,ele mesmo é detido em uma passeata.Volta para São Paulo trabalhando como arquiteto,é preso mais uma vez,e vai embora do país no fim de 1979.

“Não aguentava mais o Brasil. Nos dois primeiros volumes há muito de mim nas personagens. Nesse se um edividiem muitos, inventei muito, e minha vida segue um pouco o personagem do Martim. Estudei no mesmo colégio que ele, fechado por aquele ditador horrível,o Médici.”

A trilogia é um romance de formação. Relata a travessia dos jovens para a vida adulta, quando deixam de ser ingênuos ou desligados do que acontece em volta até o momento da tomada de consciência de si mesmos e do mundo. O romance se inicia em 1968, no auge do movimento estudantil, e acompanha a ditadura até 1979, com a anistia e a volta dos exilados

“Em‘A noite da espera’, a passagem da juventude para a maturidade se dá no contexto de violência, de censura e perseguição.Tanto que alguns personagens sofrem, passam por isso, são presos. Martim está no exílio, em Paris, já escrevendo de lá. Não é um romance, vamos dizer, político, mas ele é totalmente ambientado naquele momento de trevas.” “Pontos de fuga” é a segunda fase da vida das personagens, em que eles e elas procuram o sentido da vida, têm questões sexuais e sobreo racismo, típicas da época e também da geração de Hatoum. “Mas o grande drama do personagem principal não é exatamente político, é a mãe, é o sumiço da mãe”,diz. O terceiro livro, “Dança de enganos”

é justamente a história dessa mãe sumida e a sua descoberta de um mundo novo, por meio de relações recém-construídas e da memória. Filha de um portuário da marinha mercante de uma família de classe média baixa, ela era uma mulher convencional e se liga ao feminismo em fase de renascimento, luta com as mães pela democracia.

Neste terceiro volume, conta Hatoum, os exilados estão voltando, mas as prisões aqui continuam, o vivido na ditadura está presente, mas as personagens já estão pensando no futuro, “esse futuro nefasto encarnado pelo governo Jair Bolsonaro”.

“De alguma forma, a minha geração já sabia um pouco disso. A gente já sabia que, com a anistia geral, sem a punição dos militares, tudo poderia voltar, não é que ia, mas poderia voltar. Inclusive, o Esquadrão da Morte daquela época. Hoje, a violência policial é consequência daquele, da brutalidade daquela época”, diz.

“Ninguém, nenhum grande torturador foi punido, ao contrário, os torturadores foram exaltados. Até o governo passado foram louvados, foram festejados pelo ex-presidente da República, e há personagensque contame falamsobre isso,omovimento do passado, do presente e de um futuroincerto,mas temeroso.”

“O lugar mais sombrio” são os livros de Hatoum em que a política está mais presente, mas em todas as suas obras a memória do passado tem ecos no presente. Em “Dois irmãos” (2000), o mais louvado dos seus romances, ele retrata o assassinato brutal do professor de francês Atenor Laval, já no contexto da ditadura e simbolizando a morte da educação. Em “Cinzas do Norte” (2005) isso já é um pouco mais explícito por causa dos vínculos fortes do pai da protagonista com a ditadura e com o prefeito que está destruindo Manaus.

O papel do intelectual, para Hatoum, inclui a participação nos debates que mobilizam a opinião pública, levar solidariedade e se engajar emdefesados valores democráticos. Um dos seus inspiradores é Edward Said (1935-2003), grandepensadordoséculoXX,dequem traduziu um livro exatamente sobre esse tema, “Representações do intelectual”. Para Hatoum, o intelectual não deveria se esconder ou ficar silencioso diante das tragédias e injustiças no mundo contemporâneo

“Ele tem de ser independente. Não pode ser, vamos dizer, fiel a uma ideologia, a um partido ou a uma religião, diante das injustiças, diante da opressão, diante de um genocídio. Você não pode ou não deve ficar alheio ao que acontece no Sudão, na Palestina ou nas periferias do Brasil.”

Cita como exemplo Bertrand Russell (1872-1970), filósofo e pacifista ativo, um liberal crítico ao stalinismo e nazismo, que via o combate à opressão como uma questão humanista. Relembra seu último ato político, já pouco antes de morrer: um apelo ao Ocidente por um Estado e pela liberdade dos palestinos.

“Centenas de especialistas no Holocausto,no terror nazista,pesquisadores, historiadores, acadêmicos, e dentre eles muitos judeus, já não hesitam mais em afirmar que um genocídio está acontecendo em Gaza. Então, por que calar, se os próprios historiadores judeus, que escreveram livros seminais sobre o Holocausto, estão falando isso?”

Discussões sobreoque acontecehoje no Brasil e no mundo são uma das seduções que a ABL exerce sobre Hatoum, especialmente agora, com a nova dinâmica interna capaz de atrair novos acadêmicos e camadas da população até então distantes do “Petit Trianon”. “É fundamental proteger as instituições brasileiras, porque há ameaças no ar. E a Academia tem um corpo de intelectuais com capacidade de responder a isso com um discurso elevado e contundente”, defende.

Hatoum conta que,desde apublicação do primeiro romance, ele fez palestras e participou de eventos em escolas e universidades para formar leitores. E agora, diz, representando a ABL, vai ficar mais fácil para atrair o leitor comum, aquele fora da redoma universitária e intelectualizada.

Ele já furou essa bolha. Seus livros foram traduzidos em 17 países e, segundo a ABL, já venderam mais de 500 mil exemplares. Três dos seus romances mais famosos foram adaptados para o audiovisual.“Dois irmãos”virou série da TV Globo em 2017 e quadrinhos criados por Fábio Moone GabrielBá,premiados como Eisner,o mais importante prêmio de HQ nos EstadosUnidos.

De seu livro de contos “A cidade ilhada” (2009) saiu “O Rio do Desejo” (2022), filme de Sérgio Machado, e do romance “Órfãos do Eldorado” (2008) Guilherme Coelho fez uma adaptação para o cinema em 2015. E ainda tem “Retrato de um certo Oriente” (2024), filme de Marcelo Gomes a ser relançado em setembro.

“Tive muita sorte com meus cineastas eminha roteirista, aquerida amiga Maria Camargo. Eu vejo esses filmes como uma tradução dos romances, uma transcriação, para usar um termo, dos quadros concretos. São transcriações dos livros. O Marcelo, por exemplo, trouxe questões contemporâneas ao roteiro, como os refugiados de guerra, os imigrantes que estão no livro de forma muito lateral. E incluiu também a fala indígena, a presença dos indígenas da Amazônia e a devastação na floresta, tudo de um modo muito sutil e inteligente”, diz. 

Apesar de toda a ligação de Hatoum com a Amazônia, ele não está contente nem muito confiante na reunião da COP30 em Belém. Lembra de seu primeiro livrinho de poesia — “felizmente esquecido” —, em que um poema diz “que outro rio surgirá além deste rio feito deserto”.

“Isso foi em 78, quando a devastação do estado do Amazonas não passava de 1%. Hoje, a devastação da Amazônia se aproxima de 25%. É uma barbaridade.” Aoserperguntadose aAmazônia éo seu lugar no mundo, ele cita a epígrafe de “Cinzas do Norte” que tirou de “Grande sertão: Veredas”.“Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares.”

Hatoum diz que o intelectual não deveria se esconder ouficar silencioso diantedas tragédias e injustiças no mundo

Matéria na íntegra: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2025/08/30/a-gente-ja-sabia-que-com-a-anistia-geral-sem-a-punicao-dos-militares-tudo-poderia-voltar-diz-milton-hatoum-o-novo-imortal-da-abl.ghtml

03/09/2025