O Matuto já não sabe escrever!? Calma! É assim mesmo. “Pretuguês”, é o termo cunhado pela antropóloga Lélia González, para designar os falares observáveis em populações negro descendentes, como prova de que os africanos e sua prole deixaram uma marca linguística indelével, neste imenso Brasil – país que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio.
Como sempre, a questão candente foi abordada na “Casa das Pontes” a toque de cálices de vinho do Porto Ferreira Branco. A Belinha, a visita conservadora das ‘Pontes’, abriu as hostilidades: “Uma tal de Ana Maria Gonçalves tomou posse a semana passada na Academia Brasileira de Letras dizendo que falava “pretuguês”, e que escrevia a ‘partir de noções de oralitura e escrevivência’. Isto é o fim da picada” – reforça a Belinha – “somente em um país onde ninguém lê, e por isso ninguém entende de literatura, é que é possível à Academia Brasileira de Letras virar palanque do identitarismo”. O Sr Rocha, a visita letrada das ‘Pontes’, acrescenta: “Vocês escutaram o que ela disse? Ela falou que ‘Cá estou eu hoje, 128 anos depois de sua fundação, como a primeira escritora negra eleita para a Academia Brasileira de Letras, falando “pretuguês” e escrevendo a partir de noções de oralitura e escrevivência. E assumo para mim, como uma das missões promover a diversidade nessa casa e fazer avançar as coisas nas quais nela eu sempre critiquei, como a falta de diversidade na composição de seus membros, e uma abertura maior para o público’. Ora, é irónico que ela tenha dito tudo isto em bom Português! Onde estava o ‘pretuguês’ de que ela tanto se orgulha?” “Presumo que ela se refira a expressões que qualquer brasileiro usa no dia a dia”, esclarece Marcello, a visita reaccionária das ‘Pontes’. “Palavras como bunda, minhoca, caçula, samba, moqueca, canjica, dengue, cochilo, sunga, canga, cafofo, babá, capenga, caçamba, cafuné, xingamento, sacana, lelé, cachaça… são exemplos desse tal de “pretuguês”.
O Matuto considera que essas afro-variações são naturais. A mesma africanização aconteceu noutras línguas, como o Espanhol, o Inglês e o Francês. Só prova que a “língua” é um organismo vivo e isso nada tem a ver com tentativas de branqueamento. A língua portuguesa é riquíssima e não embarca em recalcamentos linguísticos. O Matuto recorda o linguajar de Mia Couto e as estórias que ‘desadormeceram’ nele.
Mas estas parolices linguísticas sempre existiram. Ora vejamos. É público e notório que o Matuto não tem uma relação saudável com o Novo Acordo Ortográfico de 1990. Quando o assunto vem à baila o Matuto é sempre assaltado por fungadas e gripalhadas, o nariz vira um ranhoso estardalhaço, e os olhos fazem-se chineses de reações alérgicas. Mas isso são outros quinhentos… Pensando bem, persistem certos mistérios. Se o que movia o acordo, era a necessidade de fixar e unificar a língua por causa do seu dinamismo interno, então os falantes e escreventes de ‘pretuguês’ estão de fora. Por outro lado, se a questão era numérica – há milhões de falantes brasileiros e africanos ultrapassando em barda os falantes portugueses – então os utilitários do ‘pretuguês’ vão dinamitar os cálculos numéricos deste acordo. Os ‘pretugueses’ vão deixar o Português órfão.
Aquando do acordo de 1990, o Matuto ouviu muitas vezes, na boca de artistas e escritores, a seguinte frase: “temos de ter em conta o mercado brasileiro. Prefiro pensar que terei um potencial público de 220 milhões do que 10 milhões”. Que furada, mano! Com a alvorada do ‘pretuguês’ as contas não batem. Quanto ao Matuto a coisa pia mais fino: se a língua virar este samba identitário, talvez esteja na hora de diversificar investimentos. O Matuto já está com um olho na China (um verdadeiro negócio da China!). A próxima crónica será escrita em Mandarim!
Matéria na íntegra: https://sol.sapo.pt/2025/11/17/o-matuto-e-o-pretugues/
19/11/2025