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ABL na mídia - Leia Mais Jornalistas - Ana Maria Machado: “Tenho certeza de que tudo o que vivi deixa marcas no que escrevo”

 

Poucas trajetórias pedem tanto para virar texto quanto a de Ana Maria Machado. Para preparar o perfil que celebra a autora homenageada como Personalidade Literária do Prêmio Jabuti 2025, o Leia Mais Jornalistas conversou com uma das vozes mais essenciais do país: membro da Academia Brasileira de Letras, autora de mais de cem livros, entre infantojuvenis, romances, contos e ensaios, e uma das raras brasileiras a ultrapassar a marca de 20 milhões de exemplares vendidos em 32 países.

Nesta entrevista, Ana Maria revisita memórias, processos criativos, exílios e encantamentos, articulando sua própria obra como quem costura um tecido vivo, onde jornalismo, ficção e experiência se entrelaçam. Uma conversa que ilumina a mulher, a autora e o legado que continua a moldar gerações de leitores. Bora conferir?

LEIA MAIS JORNALISTAS – Que lembrança de leitura da sua infância nunca saiu da sua cabeça e que te influenciou como escritora infanto-juvenil?

Ana Maria Machado – Seguramente, a lembrança mais marcante é da leitura da obra de Monteiro Lobato, criadora de todo um mundo onde eu podia viver na imaginação. E introduzindo também o folclore brasileiro, personagens das 1001 noites e dos contos de fadas, Peter Pan, Alice a mitologia clássica... Mas não sou capaz de apontar em que medida isso tudo vira uma influência. Talvez apenas no modelo de poder transitar da realidade à imaginação com facilidade.

LMJ – A senhora já foi pintora, jornalista, professora, tradutora… De que maneira esse “currículo múltiplo” aparece na sua escrita hoje?

AMM – Escrever ficção não é uma atividade que siga fórmulas conscientes. Tenho certeza de que tudo o que vivi deixa marcas no que escrevo. Mas não sei detectar onde nem como.

LMJ – A senhora foi perseguida pela ditadura, presa e exilada. Como essa experiência influenciou sua escrita?

AMM – De certo modo, a resposta já está incluída na anterior. Sempre fui muito independente, e com sede de justiça, buscando pensar pela minha própria cabeça. Isso me levou a várias escolhas na minha vida – desde a visão política e filosófica a toda a atividade profissional. E as escolhas me trouxeram vivências e experiências diversificadas. Essas coisas são entrelaçadas e constituem um todo, se irrigam mutuamente, não consigo separar umas das outras. Mas sei que alguns de meus livros às vezes refletem mais algumas delas. A política aparece mais diretamente em “Era uma vez um Tirano” ou em romances como “Tropical Sol da Liberdade”, “Canteiros de Saturno”, “Infâmia”. O exílio está presente num infantil como “De Olho nas Penas”. Mas o conjunto dessa vivência nunca está ausente dos outros

LMJ – Quando a senhora se percebeu, de fato, escritora? Houve um momento, um livro, um comentário de leitor que marcou essa virada?

AMM – Não houve um momento. Foi uma construção lenta e constante. Estudei Letras. Dava aulas e era jornalista, trabalhando no “Correio da Manhã” desde o tempo da faculdade. Enquanto redigia “Recado do Nome”, minha tese de pós-graduação, sobre Guimarães Rosa, escrevia histórias infantis para explorar uma linguagem mais coloquial e concreta. Um processo contínuo e constante. Sempre escrevi diariamente.

“Todo texto literário sempre comporta (e precisa comportar, ou dificilmente será literário) alusões a um grande oceano cultural em que a humanidade se move”

LMJ – O que o olhar de repórter acrescentou à sua literatura, tanto nos livros infantis quanto nos romances para adultos? Aliás, há alguma ferramenta do jornalista que usa no dia a dia como escritora?

AMM – A capacidade de observação. A atenção para para o detalhe significativo, o ouvido para a escuta de versões diferentes, o faro para detectar o que está por trás do fato e tantas vezes se busca esconder. O cuidado de pesquisar para entender as circunstâncias ou completá-las. A atenção para compor o significado do todo.

LMJ – A senhora costuma dizer que leva crianças muito a sério. O que muda na hora de escrever para um leitor infantil em comparação ao leitor adulto?

AMM – A grande diferença está no repertório de referências com as quais o escritor pode contar para estabelecer sua parceria com o leitor, uma cumplicidade indispensável. Uma troca de piscadelas e segredos. Todo texto literário sempre comporta (e precisa comportar, ou dificilmente será literário) alusões a um grande oceano cultural em que a humanidade se move. Mas o leitor infantil tem limites mais próximos, dentro desse manancial. Seu repertório é menor e mais concreto. As alusões intertextuais e as referências culturais têm de se manter dentro desses limites quando se escreve para a infância – e isso dificulta muito, fazendo com que escrever para crianças seja quase se mover numa língua estrangeira, perdida na memória.

LMJ – Muitos leitores citam “Menina bonita do laço de fita” e “Bisa Bia, Bisa Bel” como livros que mudaram sua relação com a leitura. Há algum livro seu que a senhora sente que foi um divisor de águas na sua própria trajetória? Por quê?

AMM – Não tenho certeza. Por sua trajetória, talvez “De Olho nas Penas”, porque tive a ousadia de enviar os originais sob pseudônimo para concorrer ao prêmio Casa de las Américas na categoria de literatura brasileira (e não na de literatura infantil, sempre uma espécie de gueto). E o texto ganhou por unanimidade, por decisão de um júri presidido por nosso maior crítico, Antonio Candido, tendo como relator João Ubaldo Ribeiro. Foi uma surpresa geral, a consagração do meu atrevimento, além dos limites previsíveis e normalmente impostos ao gênero infantojuvenil…

LMJ – Em alguns de seus romances para adultos, a política e a memória histórica aparecem com força. Como nasce a ideia de um romance assim? De onde vem o impulso inicial: de um personagem, de um fato real, de uma pergunta?

AMM – Cada livro é diferente. Impossível dar uma resposta que sirva para todos. Posso dar alguns exemplos. “Tropical Sol da Liberdade” surge da ideia da casa e da relação entre mãe e filha. Depois vai passando para a memória do que as duas viveram na história recente do país. "Infâmia” nasce da minha crescente indignação com a leitura diária de jornais embarcando em apurações mal feitas, leviandades, visões superficiais, tudo isso levando até mesmo a imprensa mais respeitada a publicar mentiras – muito antes de se usar o termo fake news. Comecei a colecionar recortes de noticias – desde o absurdo da cobertura cobre a Escola Base, passando pela acusação mentirosa que levou ao linchamento de uma mulher na Baixada Santista, acusada de matar criança para rituais de bruxaria... E tantos outros casos. Então primeiro vai se formando ao longo dos anos a ideia do tema. Podem ou não surgir os personagens enquanto isso amadurece. Mas o texto só deslancha mesmo quando consigo conceber a estrutura interna que o relato terá, quase como o projeto de um prédio.

LMJ – A senhora é lida por gerações diferentes ao mesmo tempo: avós que leram seus livros nos anos 80, pais que a descobriram na escola e crianças que chegam agora. Isso pesa na hora de começar um projeto novo?

AMM – Não. Raramente penso em um leitor genérico quando começo a escrever. No máximo me dirijo mentalmente a algum leitor específico – no caso de um texto infantil. Pode ser uma criança que levou bronca de um síndico do prédio, um sobrinho com medo do escuro, uma lembrança de mim mesma não querendo ser mandada, um filho chorando diante da TV vendo lobos serem perseguidos e lobinhos órfãos…

LMJ – A senhora já recebeu prêmios como o Hans Christian Andersen, o Machado de Assis da ABL e, agora, a homenagem como Personalidade Literária do Jabuti 2025. O que esses reconhecimentos mudam – se é que mudam – no dia a dia de quem escreve?

AMM – Trazem mais segurança. Servem “para me dar coragem de seguir viagem quando a noite vem... “(para citar o verso do Chico Buarque). Escrever um texto literário não é como redigir uma notícia, que é uma mensagem destinada à ampla compreensão de um grande público. O texto de ficção ou poesia é necessariamente cheio de subtextos, implica em caminhar por uma selva escura ou lançar ao mar um bilhete numa garrafa (como dizia Stendhal). A gente nunca sabe se alguém vai ser tocado por isso, se a travessia vai se completar. Um prêmio indica que não foi em vão, aquilo chegou a alguém. Aponta um reconhecimento de que o esforço e a trabalheira valeram a pena.

LMJ – Quando pensa no conjunto da sua obra, qual a sua sensação?

AMM – A de que tive o privilégio de encontrar minha vocação. E a sorte de que as circunstâncias de minha vida me permitiram estudar, desenvolver aptidões e ferramentas para seguir um caminho que eu sou capaz de percorrer. E tentar ser útil, contribuir com os meios ao meu alcance para não deixar o mundo pior do que o encontrei.

LMJ – Como foi, para uma autora tão associada à literatura infantil e juvenil, ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e depois presidir a Casa?

AMM – Antes de entrar para a ABL, a Academia já tinha me dado o Prêmio Machado de Assis para o conjunto da obra, escolhido pela votação de todos os acadêmicos (um prêmio sempre diz muito sobre quem o concede, tenho certeza disso) . Antes de mim, em mais de um século de existência, apenas 7 mulheres o tinham ganho – e duas delas depois se tornaram acadêmicas (Rachel de Queiroz e Dinah Silveira de Queiroz). Ou seja, embora minha imagem seja associada ao mundo infantil, não é apenas assim que a Academia encara ou encarava minha obra, embora seja assim que a mídia tende a me rotular , de modo redutor. E mesmo a misoginia histórica da sociedade brasileira não impediu que antes de mim, outra mulher, Nélida Piñon, também tivesse sido presidente da Casa.

“O texto de ficção ou poesia é necessariamente cheio de subtextos, implica em caminhar por uma selva escura ou lançar ao mar um bilhete numa garrafa (como dizia Stendhal). A gente nunca sabe se alguém vai ser tocado por isso, se a travessia vai se completar”

LMJ – A Academia Brasileira de Letras ainda é uma instituição predominantemente masculina. Como avalia a chegada recente de mulheres à instituição. Isso reflete um pouco como a sociedade vê a literatura feita por mulheres?

AMM – A ABL faz parte da sociedade brasileira e a reflete, com todos os seus preconceitos, por mais odiosos e retrógrados que sejam. Nem mais nem menos. Qualquer análise dessa questão deve levar em conta esse aspecto e a realidade histórica e cronológica. Durante a maior parte da existência da ABL, fora de seus muros, mulher também era discriminada em tudo e seus direitos, limitados. Meninas não estudavam nos mesmos colégios que meninos e nem mesmo tinham acesso ao estudo das mesmas matérias ou ao mesmo currículo. Lembremos como Capitu sonhava em estudar latim sem poder – a proibição na época era uma forma de limitar o acesso aos autores clássicos, que não eram traduzidos. E não era só aqui. Virginia Woolf escreve também sobre isso – uma realidade na Europa de antes da Segunda Guerra Mundial!!!. Outros sintomas da misoginia em ação em pleno século XX : mulher não tinha direito a voto, seus direitos financeiros eram limitados (para herança, administração de bens, ter conta em banco, etc). Isso reflete como a sociedade (e não apenas a Academia) via as mulheres. E uma parte ainda vê... Basta considerarmos como a universalidade de creches é inexistente até hoje no Brasil, o direito a pagamento igual para trabalho igual é driblado por toda parte, homens impedem qualquer avanço sobre o direito ao aborto. Os exemplos se multiplicam em inúmeros outros aspectos cotidianos que vão muito além da representatividade na ABL. Para não falarmos nos assombrosos números do feminicídio em nosso país.

LMJ – A senhora tem um episódio maravilhoso com a Clarice Lispector. Como foi dizer não para uma autora consagrada? Se fosse hoje, tomaria a mesma decisão?

AMM – Sem qualquer dúvida. Minha atitude tem a ver com quem sou, não com a idade que eu tinha ou o tempo que vivia na ocasião.

LMJ – Se tivesse que indicar um livro seu para alguém que nunca leu nada de Ana Maria Machado, qual seria hoje e por quê? E um livro de outro autor ou autora que a senhora considera fundamental?

AMM – Difícil responder a essa pergunta, de forma genérica. Uma indicação de leitura depende sempre de quem é o leitor, quais suas leituras prévias, suas circunstâncias de vida. Mas tento atender a seu pedido e indico “Vestígios”, por ser minha obra de ficção mais recente. É uma coletânea de contos escritos ao longo dos anos e reunidos em torno de um tema comum – todos, de alguma forma ,giram em torno de episódios em família, memórias, mudanças nessa estrutura social. Como instantâneos sociais e pessoais que deixam rastros.

Matéria na íntegra: https://leiamaisjornalistas.substack.com/p/ana-maria-machado-tenho-certeza-de

16/12/2025