Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Noticias > ABL na mídia - Estadão - Milton Hatoum: ‘A literatura fala do mundo decaído, mas com profundo senso de solidariedade humana’

ABL na mídia - Estadão - Milton Hatoum: ‘A literatura fala do mundo decaído, mas com profundo senso de solidariedade humana’

 

O romance Dança de Enganos, de Milton Hatoum, recém-eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, encerra a trilogia O Lugar Mais Sombrio, iniciada em 2017 com A Noite da Espera e continuada em 2019 com Pontos de Fuga, e que narra o drama de uma família despedaçada no contexto da ditadura militar brasileira.

Os dois primeiros livros acompanham Martim, um jovem melancólico e desajustado em relação ao mundo em que vive, como muitos protagonistas de Hatoum. Quando sua mãe decide viver com outro homem, Martim se muda com o pai de São Paulo para Brasília, rompendo os laços maternos. Desde então, todas as tentativas de reencontro fracassam e até mesmo a correspondência entre mãe e filho é interrompida. O jovem ingressa na faculdade de arquitetura, se envolve com a escrita, o teatro e a militância política, mas mesmo em meio ao turbilhão de acontecimentos típico de um romance de formação, o principal mistério do enredo permanece sendo o desaparecimento de sua mãe, Lina.

Dança de Enganos franqueia ao leitor dos dois primeiros volumes o outro lado dessa história, o ponto de vista da mãe, para quem é Martim quem some sem deixar vestígio. Além de revisitar cenas dos outros livros sob nova perspectiva, a obra mergulha na vida de Lina desde a juventude e o casamento que ela aceita por conveniência a fim de se afastar da espinhosa relação com a própria mãe. “Meu casamento talvez tenha sido um erro consentido, e o mais grave da minha vida. Quantos filhos não são frutos de um grande engano, que só o tempo desvela?”, confessa a protagonista.

A busca por notícias sobre o filho, Martim, e o irmão, Dácio, perseguidos pela repressão, leva Lina a costurar um mosaico de histórias de exilados, como uma Penélope que não se resigna com a postura passiva da espera. O núcleo do romance, porém, é o difícil convívio com Leonardo, o homem por quem ela abandonou marido e filho para viver primeiro em um sítio no interior paulista acossado pela especulação imobiliária e depois em Ouro Preto, onde se passa a maior parte da história. “O último volume é meu romance meio mineiro”, brinca Milton Hatoum em entrevista ao Estadão. “A nossa literatura surgiu em Minas, no século 18”.

O tema do laço rompido entre mãe e filho por um pai draconiano funciona como alegoria do povo exilado da própria pátria – vale lembrar que a relação filial do brasileiro para com sua terra é evocada até no Hino Nacional. Nessa chave de interpretação, Rodolfo, o pai de Martim, encarna o regime militar, atuando em ambos os níveis da narrativa — familiar e político — como a causa da separação entre mãe e filho.

Ao longo da trilogia, as personagens se dividem entre as pragmáticas, muitas das quais ligadas ao regime e às ciências exatas, e as idealistas, associadas à militância política e às artes. É sintomático que Lina tenha deixado Rodolfo, engenheiro que enriqueceu ao se aliar aos militares, para quem “o progresso e a civilização eram um triunfo da engenharia”, para viver com Leonardo, que trocou justamente a engenharia pela pintura. Por meio dessa cisão, que é mais do que ideológica, é uma diferença no modo de estar no mundo, Dança de Enganos supera o debate meramente político para fazer um comentário sobre o despertar da consciência.

Leia abaixo trechos selecionados da entrevista.

Como equilibrar o drama íntimo, familiar, e a dimensão política, coletiva?

Esse é o trabalho da minha vida. Buscar esse equilíbrio entre os fatores internos, subjetivos, os dramas interiores, e o quadro histórico político. Essa pergunta, na verdade, diz respeito ao meu projeto literário desde o início. Há uma literatura muito centrada na subjetividade, na sondagem do eu, uma sondagem interior, filosófica. A obra da Clarice [Lispector] expressa isso. Há um outro tipo de narrativa que privilegia os acontecimentos externos, a política ou a história. E há um meio termo, a literatura que tenta esse equilíbrio entre a subjetividade e o mundo real.

Percebe-se, ao longo dos três livros, uma distinção entre o utilitarismo, simbolizado pela ciência, e o idealismo, simbolizado pela arte. Como o senhor enxerga a conciliação entre esses dois mundos?

Essa separação entre ciências e artes tem uma origem no século 19. Isso era uma preocupação de grandes escritores, como Joseph Conrad e Euclides da Cunha. Euclides acreditava no progresso e na ciência e às vezes ele falava dessa linha reta do engenheiro, que prejudicou de certo modo a literatura de Euclides. Conrad, por sua vez, dizia que a arte tem um mistério e uma obscuridade imanentes. Nem tudo pode ser explicado. A ciência tem um lado empírico, uma experiência, para chegar a uma conclusão. Assim como a psicanálise, ela tenta explicar o que está acontecendo. A literatura não deve explicar. Há uma zona um pouco sombria da arte em que as coisas não são totalmente decifradas. Hoje há uma tendência de uma certa literatura que quer explicar, denunciar, que vê só um lado do ser humano ou que contrapõe o bem contra o mal. (...) A literatura fala essencialmente das relações humanas, que são complexas e contraditórias. Através das contradições, você humaniza.

A escrita desses romances se deu em um momento em que o Brasil voltou a flertar com o autoritarismo. Em que medida isso condicionou ou alterou sua escrita?

Na medida em que eu achei necessário inserir algumas falas sobre o autoritarismo. Isso já existia no Pontos de Fuga, em uma fala do [personagem] Nortista, sobre o autoritarismo que sempre ronda a América Latina, vai e volta, não desaparece totalmente. No Dança de Enganos, tem uma fala de uma salvadorenha (...) que diz que esses monstros agonizam, mas não morrem, eles sempre voltam com força. São coisas que acrescentei naquele período difícil do governo anterior, com a morte de 700 mil brasileiros, uma parte desses óbitos em função do atraso deliberado da vacinação. Eu tive que escrever algumas coisas, não muito, mas que falassem disso. Porque a Lina e o filho não eram politizados. Ela era uma esposa convencional, ele é filho de um casal convencional do Paraíso. (...) Aos poucos, ela adquire uma consciência política e também da condição feminina, do corpo inclusive, da liberdade, de que ela foi humilhada. E começa a lutar contra isso.

Como a literatura pode se impor em um mundo cada vez mais atraído por telas e como os leitores podem voltar a desfrutar da literatura de uma maneira mais profunda?

Fizeram essa pergunta a Jorge Luis Borges há meio século e ele disse: ‘Eu não sei como será a literatura do ano 2000 porque eu não sei como será o leitor do ano 2000’. Mas eu posso dizer que os livros ainda são lidos, os clássicos ainda são lidos, tenho a sorte de ainda ter leitores – e jovens leitores. Eu acho que quem pode e deve desempenhar um papel fundamental na formação de leitores é a escola, sobretudo a escola pública, que deve ter qualidade. Acho absurdo o que se tem feito em São Paulo, esse projeto da escola cívico-militar. A escola é laica, nós não vivemos nem no estado teocrático, nem no estado de exceção. A escola é fundamentalmente laica e aberta a todos os pensamentos, sejam liberais, sejam progressistas.

Quais são suas expectativas para integrar a ABL quanto ao que pode ser feito nesse sentido de formação de leitores?

Foi uma honra ter sido eleito, acho que é uma instituição que está se renovando nos últimos 15 anos. Me surpreendeu a importância que a ABL tem para o público em geral. É uma instituição consolidada, importante até mesmo para promover o conhecimento, a literatura brasileira. Há ciclos de conferências importantes, com a inclusão de brasileiros da periferia. O que eu pretendo fazer é o que eu sempre fiz desde o início: dar palestras, ir às escolas e universidades públicas e particulares, tentar formar jovens leitores. É muito difícil formar um leitor. Se eu não tivesse lido dos 12 aos 15 anos autores brasileiros e estrangeiros importantes, os clássicos, será que eu seria apaixonado por literatura? Há os livros certos no momento certo.

Toda a sua obra é calcada na experiência do exílio, seja geográfico ou íntimo. Desde que o senhor começou a publicar, o número de exilados pelo mundo só aumenta por conta dos conflitos. Como enxerga essa questão?

A literatura é uma forma de exílio. Essa solidão da escrita e você sair de si e inventar outros, tudo isso faz parte da condição de exílio. O que hoje está acontecendo no mundo de forma aguda e trágica não é novo, acontece já há séculos. Faz parte de uma crise de todo o sistema em que já não há mais emprego para todos e o outro, o imigrante, o que vem de fora, é uma ameaça. O que cria essa multidão de refugiados, expatriados. O que acontece hoje em Gaza, na Cisjordânia, se configura como a maior tragédia do século. Porque enquanto você não ver o outro com empatia, você nunca terá paz. A aceitação da diferença é uma premissa para a harmonia. (...) A literatura tem um alcance humanista na medida em que nem todos os sonhos humanistas estão enterrados. Ela fala da catástrofe, do mundo decaído, mas com um profundo senso de solidariedade humana.

‘Dança de Enganos’

Autor: Milton Hatoum

Editora: Companhia das Letras (R$ 78 e R$ 34 o e-book; 256 págs.)

Matéria na íntegra: https://www.estadao.com.br/amp/cultura/literatura/milton-hatoum-a-literatura-fala-do-mundo-decaido-mas-com-profundo-senso-de-solidariedade-humana/

04/11/2025