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Cravei, mas não foquei

 

Há pouco, chamei a atenção aqui para a incidência de batidas de martelo no nosso dia a dia. Qualquer decisão, certeza ou afirmação mais peremptória a que chegamos, lá vem o indefectível "Já bati o martelo!". Como quem diz: "É isso aí, não tem conversa!". Nos jornais, o mesmo: "Júri bate martelo sobre melhor sardinha em lata". Pela frequência com que se bate hoje o martelo a respeito de qualquer coisa, imagine a cacofonia. Por sorte, bater o martelo é apenas uma expressão, uma tomada de liberdade da língua. O que não a impede de ser um clichê, algo que falamos sem pensar, frase que se forma sozinha na boca, sem passar antes pelo cérebro.

Outro verbo que não demora a chegar à boca do povo, pela insistência com que é usado nos sites e veículos impressos, é "cravar". Estão cravando tudo: "Vidente crava quem vai ganhar a Libertadores"; "Meteorologia crava chuva no feriado"; "Analistas cravam Papuda como novo endereço de Bolsonaro". Cravar é penetrar à força, fincar, pregar cravos. Cristo, por exemplo, foi cravado na cruz. Já cravar um palpite é fácil —se for um palpite errado, o sujeito não será crucificado por isso.

E temos também "escancarar". Ninguém mais revela, admite, confessa ou confirma qualquer coisa —escancara. Escancarar, que é abrir, mostrar, exibir, até há pouco só era possível com portas, principalmente se estivessem fechadas. Hoje escancaram-se até portas abertas: "Nutricionistas escancaram sua admiração pela banana". E há escancaras surpreendentes: "Influenciadora escancara preferência por homens sinceros e desinteressados".

E o que dizer de "disparar"? Até algum tempo só se disparavam balas. Hoje, disparam-se insultos, ofensas, imprecações. Assim como ninguém mais vê, prevê ou fica atento a alguma coisa. Em vez disso, "mira", como no tiro ao alvo do mafuá. E será preciso falar de "focar"? Eu não foco, porque acho esse verbo ridículo, mas o país inteiro, freneticamente fricativo, foca sem parar ao meu redor.

Pronto, bati o martelo. Cravei.

Folha de São Paulo, 08/11/2025