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O que é poder? Descobri em uma Semana Santa

 

A Semana Santa me perpassa uma ponta de nostalgia, foi em uma delas que senti sensação que somente anos depois, muitos anos, soube o que era. Aquilo vez ou outra se repetiu, não com tal intensidade, não importa. Vivi aquele instante e compreendo o que move os totalitaristas, ainda que não os justifique.

Entre sete e dez anos, em Araraquara, a cada Semana Santa eu gozava um instante de poder absoluto no Sábado de Aleluia. Por momentos, o mundo paralisado, de luto, dependia de mim para voltar ao normal. Posso dizer que eu me sentia senhor do tempo.

Naquela época, eu, com oito para nove anos, era coroinha na Matriz. A Semana Santa era, para os católicos, sofrimento e dor. Revivia-se a tragédia de Jesus. E então, a ressurreição. Todos os altares e imagens da igreja eram cobertos. Um telão isolava a capela-mor. Não se ouvia rádio, os sinos não tocavam. Jejum. A campainha sonora dos rituais era trocada pela matraca, som grave de ferro sobre madeira. Luto total. No Sábado de Aleluia, o padre começava a missa normalmente, até chegar o momento em que ele se exaltava e dizia: Gloria in excelsis Deo (se a memória não falha, já se passaram 80 anos) e eu devia tocar a campainha. Momento de júbilo.

Tocando, o telão que isolava o altar-mor caía, filhas de Maria soltavam pombos que revoavam pela nave. Os sinos tocavam. Luzes se acendiam, Zilá Borges tocava o órgão, as locomotivas apitavam, autos buzinavam, quadros e imagens eram desvendados, Cristo tinha ressuscitado. Alegria. Nas ruas os Judas eram queimados, vergastados.

Certo sábado, Monsenhor Alcindo cantou Gloria in excelsis Deo. Fiquei imóvel. Tudo dependia de mim para começar, louvar a vida, alegrar-se. Um ritual de alegria e felicidade me aguardava, mas começaria somente depois de minha campainha. Um minuto, nada. Tudo dependia e mim, de quando eu quisesse. Monsenhor me olhou, “está dormindo?”. Eu, nada. Ele subiu o tom, vamos menino. Sorriu. Sei hoje, era masoquismo, porém eu estava gostando, olhava para minha mão, para a campainha. Era paciente, orgulhoso: se não toco, a missa não acaba, nem a Semana Santa, Cristo não ressuscita. Monsenhor me olhou de novo, havia frieza e raiva em seus olhos, toquei a campainha. A alegria se fez presente, os sinos repicaram, as rádios funcionaram, os trens apitaram, os Judas foram estripados

Aquilo foi poder. Fiz Cristo ressuscitar. A alegria voltou. Hoje, diante de tanto escarmento, imagino que o que falta é um Monsenhor Alcindo, colocando ordem na casa. Digo mundo. Ou não há mais monsenhores?

 

Estadão, 20/04/2025