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Liturgia do conteúdo

 

Patrícia Alencar, prefeita da minúscula Marituba, no Pará, 37 anos, provocou sensação há dias ao postar, em seu perfil privado no Instagram, um vídeo em que aparece de biquíni creme, dançando ao som do forró "Pancada de Mulher", da dupla Xand Avião e Zé Vaqueiro. Marituba, segundo o IBGE, é o menor município do Pará e do Norte do país, mas o vídeo vazou e viralizou nas redes. Patrícia foi duramente criticada por alguns internautas: "Faça seu trabalho de prefeita e deixe essas dancinhas para vendedoras de conteúdo", bradou um deles.

O conteúdo da prefeita, no entanto, parece ter sido aprovado por grande maioria, já que seus seguidores subiram num átimo à casa do milhão. Pelas redes sociais, Patrícia se defendeu: "Quem tem luz própria, podem tentar derrubar, mas Deus não deixa cair". Apoiada por eleitor de tal peso, ela nem precisaria se justificar. Mas, com toda propriedade, acrescentou num dos programas de TV a que foi convidada: "O corpo de uma mulher incomoda mais do que a corrupção, a ineficiência e o descaso na política".

A prefeita tem razão. Em 1979, o recém-"eleito" presidente João Baptista Figueiredo posou, queimado de sol, peito nu, tênis branco, meias soquete e exígua sunga em seu retiro na Granja do Torto, em Brasília. A combinação de queimado de sol, peito nu, tênis branco, meias soquete e exígua sunga faz de qualquer esquálido uma potência. E Figueiredo era só músculos, inclusive no cérebro. Imagine os ex-presidentes Dutra, Jânio Quadros ou Castello Branco em trajes sumários –nunca um ocupante do cargo se apresentara daquele jeito. E Figueiredo seguiu impoluto no Planalto.

Ao que se saiba, o vídeo de Patrícia não a mostra dançando em seu gabinete na Prefeitura, mas no sacrossanto recesso do lar. Se Dutra, Jânio e Castello tivessem se deixado fotografar em casa, de sapatos, meias pretas e cuecas samba-canção, só mereceriam reparo estético, não litúrgico.

Afinal, fizeram coisas muito mais repulsivas em seus mandatos do que mostrar as canelas.

Folha de São Paulo, 12/06/2025