O ÚNICO reproduz neste domingo (30), entrevista do escritor amazonense, Milton Hatoum, concedida ao jornal O Estado de Minas Gerais, num trabalho do diretor de redação Carlos Marcelo, onde ele fala sobre diversos temas e revelando hábitos simples, como escrever seus textos à mão, deixando de lado toda tecnologia existente nos dias atuais. Confira essa conversa num estilo bem mineiro, conheça um pouco mais desse grande escritor mundial e veja a reportagem no EM no link: https://www.em.com.br/pensar/2025/11/7302652-milton-hatoum-o-lugar-mais-sombrio-pode-ser-o-coracao.html [1]
É preciso dar tempo ao passado. No início dos anos 1980, Milton Hatoum tentou narrar a história da trilogia “O lugar mais sombrio”, baseada na vivência do autor durante a ditadura militar. Não conseguiu. Ao ler a primeira tentativa de um romance com recorte geracional, o tradutor argentino Mario Martino decretou: “Isso não é um romance, é uma crônica. Acho que você não esperou o tempo passar”. Hatoum deu razão ao amigo e, assim, respondeu à pergunta que encerrou “Pontos de fuga”, o segundo volume da trilogia: “A memória só faz sentido depois do esquecimento?”. Esquecer para lembrar do que pertence à literatura, esquecer para narrar sem as amarras da realidade, com os recursos da ficção. Revolver.
Inquietações de Milton Hatoum
Ainda em “Pontos de fuga”, surgem duas perguntas que resumem as inquietações de Milton Hatoum: “Como viver num tempo trágico e numa terra trágica?”e “Alguém se livra do medo?”. As respostas, ou a ausência delas, estão em “Dança de enganos”, que encerra “O lugar mais sombrio”, iniciada em 2017 com “A noite da espera”, todos publicados pela Companhia da Letras. “Neste terceiro volume da série, Lina tomará a frente da narrativa, trazendo à tona segredos e uma nova perspectiva à história”, antecipa o autor, na abertura, ao revelar que Lina, mãe do jovem Martim, protagonista dos dois livros anteriores, assume a condução de uma história feita de reticências, vidas desmoronadas e descompassadas. Ao fim da jornada, uma revelação de impacto e uma certeza: o passado ainda é capaz de dilacerar o presente.
“Na América Latina e no mundo todo esses monstros fascistas agonizam, mas não morrem. E o que é pior: voltam com força”, narra Hatoum, no último livro de sua trilogia das ilusões perdidas. Ele reconhece que os fatos ocorridos durante o governo Bolsonaro, defensor da ditadura militar, influenciaram a escrita de “Dança de enganos”. “Num certo momento, a literatura, para mim, é uma espécie de vingança. Foi uma vingança”, afirma. “Tinha essa dívida com os meus amigos que se foram e com os que foram brutalmente torturados e sobreviveram. Vi o medo que eles sentiam. Foram muito generosos comigo. Por isso, a literatura é também uma vingança contra essa perversão”. Ele complementa: “Quando escrevo eu me livro do medo”.
Uma história que começa em Manaus
Nascido em 1952, o autor amazonense radicado em São Paulo esteve em Belo Horizonte para o lançamento de “Dança de enganos” no “Letra em cena” e gravou entrevista para o podcast do Pensar na sede do Estado de Minas. Contou por que o novo livro, recheado de referências a cidades históricas como Ouro Preto e Congonhas e encerrado com um poema de Murilo Mendes, pode ser considerado o seu “romance mineiro”. Ele também comentou os 25 anos de lançamento do maior sucesso, “Dois irmãos”, e apontou a dívida que o Prêmio Nobel tem com os escritores brasileiros: “A Academia Sueca olha para o Brasil com indiferença ou com um olhar exótico. Se fosse mais séria, já teria dado o prêmio a Drummond, Rosa, Clarice, João Cabral, Bandeira…”
Além do ponto final na trilogia, 2025 é o ano em que Milton Hatoum passou a integrar a Academia Brasileira de Letras. Eleito em agosto para ocupar a cadeira 6, que pertencia a Cicero Sandroni, confessa que resistiu por anos à ideia de se tornar “imortal”. “Me senti muito honrado, fiquei alegre, mas sou muito avesso a ritual.” A posse será no dia 24 de abril de 2026, mas ele antecipa que o seu discurso conterá referências ao fundador e primeiro presidente da ABL, Machado de Assis.
Leia, abaixo, trechos da entrevista de Milton Hatoum ao Estado de Minas
Uma das epígrafes de “A noite da espera”, livro inaugural da trilogia “O lugar mais sombrio”, é do poeta sírio Adonis: “A solidão é a tinta da viagem.” Como é chegar ao fim da viagem com a publicação de “Dança de enganos”?
Foi uma viagem solitária? Solitária e muito longa (risos). Vamos dizer que a semente dessa trilogia, o início de tudo foi no ano de 1980, quando ganhei uma bolsa do governo espanhol de uma instituição do governo espanhol e fui passar um tempo em Madri e Barcelona. A ideia de escrever romances com um recorte da minha geração surgiu naquele momento. Cheguei a escrever umas cem páginas, ou um pouco mais, sobre minha experiência no final dos anos 1960 em Brasília e São Paulo. Dei para um amigo ler, Mario Merlino, argentino que faleceu há alguns há poucos anos e era um grande tradutor de literatura brasileira (traduziu Raduan Nassar, Graciliano Ramos, Osman Lins). Ele leu e disse: “Isso não é um romance, é uma crônica. Acho que você não esperou o tempo passar”. Fiquei com essa frase. E ele também me disse: “Você é do Amazonas, tem origens libanesas. Por que não escreve sobre isso?” Ele estava absolutamente certo. Descartei aquelas cem páginas. Foi o meu primeiro fracasso – e o fracasso nos ajuda a repensar tudo, faz parte da vida. Trinta e cinco anos depois, comecei a pensar na trilogia. Só que passei mais de dez anos escrevendo o romance porque não era originalmente uma trilogia. Era um romance enorme. Sofria um pouco de elefantíase (risos).
Balzaquiano?
Muito balzaquiano.
E este romance teve que ser ‘flaubertizado’?
Gostei disso.
No sentido de buscar a concisão…
Flaubertizado… Achei ótimo. Vou anotar e usar com a sua permissão (risos). Sim, o romance foi flaubertizado e isso deu muito trabalho. A editora achou melhor, por questões editoriais, dividir em três. À medida que eu ia publicando, fazia alterações. Quando saiu o primeiro (“A noite da espera”, 2017), já fiz uma revisão e isso foi aumentando. Fiz várias alterações no segundo e no terceiro também.
O contexto brasileiro contribuiu para essas alterações?
Não só a pandemia, mas o governo anterior. Todo aquele ambiente opressivo que a gente estava vivendo, me lembrou muito o meu tempo de Brasília e de São Paulo na minha juventude.
Você começou a escrever enquanto cursava a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, certo?
Comecei a escrever naquela época, mas queria ser arquiteto. Depois, com essa bolsa para Espanha, comecei a me dedicar à literatura.
Mas você leva para a literatura um princípio da arquitetura: da elaboração do projeto.
Foi importantíssimo. E tive muita sorte. Na FAU, o meu orientador de um trabalho de iniciação científica foi o geógrafo Milton Santos. Aprendi muito. Meu primeiro trabalho sobre Manaus foi orientado por ele. Resultou num livro que se chama “Crônica de duas cidades: Belém e Manaus”, que escrevi em parceria com o saudoso professor, filósofo e crítico literário Benedito Nunes, publicado pela Secretaria de Cultura do Pará e talvez seja reeditado pela Companhia das Letras. A formação na FAU foi importante também pelas disciplinas que fiz no curso de Letras., Assistia cursos de teoria literária, literatura hispano-americana… me formei também como arquiteto e como leitor. A ideia do projeto, cuja etimologia vem do desígnio, do desejo, estava na minha formação na FAU. Todos os meus romances fiz desenhos como os de um projeto de arquitetura.
Você ainda escreve à mão?
Eu me acostumei a escrever à mão. Acho que o pensamento flui com mais rapidez, maior naturalidade. E sou um péssimo digitador
Quando você transcreve já é uma primeira edição?
Transcrevo tudo que escrevi à mão, depois imprimo. E aí começa um longo processo de revisão. De “Dois irmãos”, por exemplo, fiz 20 impressões, revisando e reimprimindo. São pilhas e pilhas de manuscritos, que vou corrigindo depois.
“Dois irmãos” completou 25 anos de lançamento em 2025. Além de diversas edições, foi adaptado para teatro, televisão, quadrinhos. Por que aquela história se comunicou com tantos leitores no país e no mundo?
Sabe que isso é um mistério para mim? Quando leu (os originais), o meu editor, Luiz Schwarcz, disse: “Eu não consegui parar de ler o teu manuscrito, acho que esse romance pode cair nas graças do do público leitor”. Com meu pessimismo, não acreditei. Mas não foi um best seller instantâneo, longe disso. Uma livreira me disse: ‘Esse é um livro que vai, aos poucos, conquistar os leitores’. E ela estava certa. Isso aconteceu também porque professores e professoras trabalharam muito com “Dois irmãos”em sala de aula. Foi incluído na lista de leituras de vestibular em praticamente todo o país e muitas universidades. E, de fato, alcançou um público enorme para os padrões brasileiros. Mas aí eu pergunto para os leitores de “Dois irmãos”: ‘Você tem alguma coisa contra os outros?’ Se bem que “Cinzas do Norte” e o “Relato de um certo Oriente” também tem muitos leitores.
Qual o ponto de partida de “Dois irmãos”? Uma imagem, um personagem ou o próprio título?
Eu não conseguia encontrar o título. Quem deu foi o meu editor.
Você não tinha sequer um título provisório?
“Zana e seus filhos”. Havia outras tentativas, mas nenhum me agradou. Aí o editor falou: “Dois irmãos”. Coisa simples, mas é isso também. O ponto de partida foi a minha leitura de “Esaú e Jacó”, do Machado de Assis. A rivalidade entre irmãos que já está no ventre da mãe ficou na minha cabeça, assim como ele falar também do Rio de Janeiro, do fim da monarquia ao início da República. Lembro que pensei: “Vou tentar também, humildemente, e, claro, falar um pouco também do Brasil.’Fiquei remoendo isso com outras leituras de outros romances, histórias de outras rivalidades de famílias, não só libanesas. Aí fui juntando com coisas que eu escutava. Porque, para o escritor, a leitura e a escuta são importantes. Mas demorei anos pensando nisso. É um risco escrever um romance sobre gêmeos. Você pode cair na armadilha de eles serem iguais. E eu quis que os gêmeos tivessem, ao mesmo, afinidades e muitas diferenças. Alternar isso e tornar um pouco mais complexo em relação à mãe, ao pai, ao narrador, foi meu desafio.
Uma das características de seus romances é a força das personagens e isto fica ainda mais evidente em “Dança de enganos”, que tem uma narradora feminina.
Elas foram fundamentais. No primeiro romance, “Relato de um certo Oriente”, tinha até uma referência a uma ‘muralha de mulheres’. É que a presença das minhas tias, minha avó, minha mãe, era muito forte. Na minha família, os homens eram muito silenciosos e submissos. O que contraria o clichê de que, nas famílias árabes, os homens são machistas: ao contrário, os muçulmanos são extremamente respeitosos de um modo geral. A mulher brasileira, muitas vezes, cria sozinha os seus filhos. Têm que ter uma força enorme. E isso foi muito marcante na minha infância.
Muito do que você escreve tem referências de sua infância e da juventude?
Tudo que eu escrevi, todos esses romances têm, vamos dizer, uma gênese nessa época da minha vida, na passagem para a vida adulta. Lembro de uma frase muito bonita de “Os demônios”, de Dostoiévski: “A segunda parte da nossa vida é o acúmulo da experiência vivida na primeira.”
Então, podemos dizer que a sua literatura, mais do que uma reflexão, reflete um acúmulo de experiência, o que a memória guardou e o que foi esquecido? A memória é essencial na sua obra?
É essencial. Por isso, não escrevi tantos romances. A distância temporal sempre me ajudou muito para o que eu quis fazer. Compor esse painel da trilogia só foi possível depois de muito tempo. Porque aí eu já tinha esquecido de muitas coisas. Nesse momento, quando a memória fica muito esgarçada ou nebulosa, você só pode recuperá-la através da imaginação. Cada um dos personagens (da trilogia) tem um pouco também da minha vida ou de meus amigos. Todos os personagens, de alguma forma, eu os conheci. São inspirados, vagamente ou não, em pessoas que passaram pela minha vida
Da forma que você lembra deles?
Da forma que eu me lembro ou que não me lembro.
E as lacunas da memória são preenchidas com a imaginação…
Para mim, é importante. Na verdade, é o que me move.
Podemos dizer que ‘Dança de enganos’ é o mais próximo que você pode ter chegado de ter escrito um romance mineiro?
Acho que sim. Eu, e tantos brasileiros apaixonados por literatura, sempre tivemos uma dívida com os mineiros. A literatura brasileira nasceu em Minas. A poesia árcade é fundamental na poesia brasileira. E há bons poetas ali. Sem contar a música… Milton Nascimento, alguns clássicos do Clube da Esquina também estão em “Dança de enganos”. A arquitetura, a história profunda do Brasil passa por Minas. Pelo Nordeste, claro; Bahia e tal. Mas por Minas. O encanto que tenho pelas cidades históricas mineiras todo brasileiro deveria ter. Ninguém vai a Tiradentes, Diamantina, Ouro Preto, Mariana e acha feio. Claro, tem o peso da escravidão. Mas é de uma beleza extraordinária. Aleijadinho é um milagre. Como ele conseguiu fazer tudo aquilo? Posso dizer o mesmo em relação a Drummond e a Guimarães Rosa. Como eles não ganharam o Nobel?
O escritor Milton Hatoum na sede do Estado de Minas com réplica da estátua do profeta Jonas: “Aleijadinho é um milagre” Carlos Marcelo/EM/DA Press
Este ano o seu nome chegou a entrar em bolsas de apostas para o Nobel. Como é que você viu esse movimento? E por que o Brasil nunca foi lembrado?
A Academia Sueca olha para o Brasil com indiferença ou com um olhar exótico. Se fosse mais séria, já teria dado o prêmio a vários mineiros: Drummond, Rosa e outros. Além de Clarice, João Cabral, Bandeira.
Você acha que o Nobel reflete uma visão europeia do mundo?
Totalmente. Uma visão europeia, um olhar superior, que faz algumas concessões para África, Ásia e América hispânica.
Você encerra uma trilogia ambientada no período da ditadura militar. E, na minha opinião, uma das forças dessa trilogia, e que fica mais evidente em ‘Dança de enganos’, são as cicatrizes que essas pessoas carregam no corpo e na alma. Por que ainda é importante escrever sobre esse período?
Porque a tentativa de implantar uma ditadura ainda está muito presente. As pessoas perguntam: por que ainda se fala nisso? Ora, houve uma tentativa explícita de golpe. Quebraram as sedes dos Três Poderes, vandalizaram aquilo tudo, falaram abertamente de golpe. O ex-presidente exaltou um dos grandes torturadores desse país. Está gravado, todo mundo viu. A ideia de reimplantar um regime autoritário não morreu. Há uma frase em “Dança de enganos”, do pai do Martim, que é um cérebro da ditadura. Ele diz: “Esses generais, na época da abertura, eles os generais hoje são covardes, os generais de 64 já não existem mais, se acovardaram.”
Mas como a ditadura militar impacta os seus personagens nessa trilogia?
Minha geração viveu toda a juventude e uma parte da vida adulta sob uma ditadura. Eu vi esses caras em Brasília e em São Paulo. A ditadura roubou a juventude de uma parte da minha geração. Simplesmente roubou, sequestrou, torturou, infligiu medo nas nossas vidas. Além de ter destruído um projeto educacional. Este foi um dos crimes da ditadura que até hoje nós não conseguimos nos recuperar. Deixou sequelas profundas.
E as sequelas aparecem em seus personagens. É isso?
Aparecem nos personagens dos três livros. Num certo momento, a literatura, para mim, é uma espécie de vingança. Foi uma vingança.
Por quê?
Porque eu não queria deixar isso passar despercebido. Tinha essa dívida com os meus amigos que se foram, os que foram brutalmente torturados e sobreviveram. Alguns abriram os baús e me deram os diários deles pela América Latina, li tudo isso. Vi o medo que eles sentiam. Foram muito generosos comigo. Por isso, a literatura é também uma vingança contra essa perversão, essa loucura assassina do sistema.
Nesse sentido, foi por isso também que você acentuou em “Dança de enganos” a conexão entre o passado e o presente?
Sim. No governo anterior, foram quatro anos de desprezo total pela democracia, de celebração de um regime autoritário, da ditadura militar. E o que eles fizeram em quatro anos? Acabaram com o Ibama, enfraqueceram todos os órgãos de controle do meio ambiente e de saúde. Quantos ministros da saúde foram trocados? Cada um mais desastroso do que outro.
“Medo” é uma das palavras mais presentes nos romances da trilogia. No segundo volume, “Pontos de fuga”, o narrador pergunta: “Alguém se livra do medo?” Você já se livrou?
Quando eu escrevo, eu me livro do medo. Escrevo sem medo. Eu acho que a arte é o maior gesto de liberdade. A arte e o amor são gestos de profunda liberdade e isso nos humaniza.
A trilogia chama-se “O lugar mais sombrio”. Que lugar é esse?
É um lugar mais difuso. Ou plural. Pode ser o momento de um país. Pode ser um sentimento. Pode ser o coração. Em um livro recém-lançado, a coletânea de entrevistas “Sobre a ficção” (Companhia das Letras), de Ricardo Viel, você define o romance como a arte da paciência. Mas a gente vive um tempo de impaciência, de frenesi provocado por diversos estímulos.
Nesse sentido, você está fora do seu tempo?
Eu me sinto um peixe fora d’água. Ou, para brincar com meu sobrenome, um atum fora d’água. Sou, definitivamente, do século passado. Foi a época em que vivi a maior parte da minha vida. Essa pressa, essas informações instantâneas que circulam pelo planeta todo, enfim, essa fixação nas redes sociais e na imagem… Tudo isso é anti-literário.
Mas por que o romance é a arte da paciência?
Porque, ao ler um romance, você está lendo também uma pequena ou grande biblioteca que o autor ou a autora leu. Imagina o que há por trás dos contos do Borges, dos contos e romances de Guimarães Rosa? Quantos livros, quantas leituras foram ali sedimentadas? E o tempo da leitura do romance também é um tempo longo. Sou muito mais rápido para ler. Mas, para escrever, eu sou uma lesma, uma tartaruga. E assumo isso sem nenhum problema. O tempo do romance é o tempo lento, né? Assim como o da culinária. Há alguma coisa mais deprimente do que o fast food? Há um tempo de decantação. Acho que não pode haver pressa para ler, escrever, amar, para degustar um prato, para comer. São os prazeres humanos que pedem tempo. Esse tempo também é amoroso, da relação amorosa com o objeto. E isso está um pouco extemporâneo, está um pouco fora do nosso tempo.
Você é um poeta frustrado?
Na verdade, eu não tentei muito. Eu intuí que o poeta é um iluminado. Um prosador, com muito esforço e algum talento, pode escrever um bom romance. Claro que esse esforço existe na poesia. Mas um poeta tem alguma intuição poderosa do ritmo, das metáforas. Tentei mitigar um pouco essa frustração no meu primeiro romance, “Relato de um certo Oriente”, que é mais lírico. De vez em quando, eu escrevo um poema.
Vai publicar um dia?
Quem sabe?
Em “Dança de enganos”, um dos personagens afirma: “Certas personagens fazem parte da nossa memória, nos ajudam a pensar”. Quais os personagens da literatura que fazem parte da sua memória, que o ajudam a pensar?
Riobaldo, claro, me faz pensar o tempo todo. Personagens de Machado como Brás Cubas, com aquela erudição cínica, me fazem pensar também. Porque é uma erudição que, no romance, não serve para nada, mas está se pavoneando com aquilo e mostra também o caráter de uma certa elite brasileira naquela época. Personagens de Graciliano Ramos têm muito a ver com o Brasil de hoje, é um escritor poderosíssimo. A Clarice (Lispector) tem personagens que nos fazem pensar do ponto de vista da condição humana, das reflexões filosóficas que estão lá. Tem tantos personagens dos (escritores) russos… Já citei o Dostoiévski, mas poderia citar outros. O Ivan Ilitch, de Tolstói, uma lição de vida no momento do lado mais mesquinho e ambicioso do ser humano morrendo sabendo que vai morrer e os supostos amigos já pensando no cargo que vão ocupar.
Você carrega esses personagens da mesma forma que suas lembranças particulares? Ou seja, na sua cabeça eles parecem tão vivos como as próprias lembranças?
Eles estão vivos. Com o tempo e a idade, a gente se esquece de muitas coisas. Mas desses personagens eu não esqueço. E, quando eu me esquecer, eu acho que será o momento do adeus.
Como a sua memória ainda pode contribuir para sua escrita?
Eu escrevi, vamos dizer assim, como se fosse um copião, de um novo romance com alguns pontos em comum com a trilogia. A história de uma personagem franco-brasileira: Évelyne Sentier, amiga do Martim, que aparece nos três volumes.
Também vai ser um romance de 800 páginas a ser fragmentado?
Não! Prometi a mim mesmo que nisso eu não me meto mais. O romance com a história dessa personagem já está esboçado, preciso reescrever. Penso também escrever as minhas memórias de infância em Manaus. Há também alguns contos que já estão esboçados, só preciso reescrevê-los. Eu tenho muitas ideias. Não sei se terei tempo para elas. Mas, enquanto tiver um pouco de energia física e lucidez, eu vou tentar.
Matéria na íntegra: https://portalunico.com/milton-hatoum-o-lugar-mais-sombrio-pode-ser-o-coracao/ [2]
03/12/2025Links
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[2] https://portalunico.com/milton-hatoum-o-lugar-mais-sombrio-pode-ser-o-coracao/