Eventos literários lotaram combinando densidade e engajamento político
Em 2025, o Brasil se olhou através da literatura. O país virou vitrine com o título de Capital Mundial do Livro para o Rio, viu sua centenária Academia Brasileira de Letras eleger uma mulher negra pela primeira vez e debateu passado e futuro em eventos literários. As festas e feiras lotaram com convidados estrelados e temas engajados, colocando em destaque questões como gênero, raça, desigualdade, meio ambiente e democracia.
Rio, meca do livro
Em abril, o Rio se tornou a primeira cidade de língua portuguesa a receber da Unesco o título de Capital Mundial do Livro. Para que o título, que se encerra em abril de 2026, não se torne meramente simbólico, a cidade multiplicou ações pela leitura. Projetos como o Favelivro, que atingiu 49 unidades em comunidades cariocas, mostraram que a democratização da leitura envolve presença territorial e capilaridade.
Marco na ABL
Primeira mulher negra a ingressar na ABL, Ana Maria Gonçalves tomou posse falando em “abrir portas para não ser a única”. A nova ocupante da cadeira 33 quer que sua presença na Casa de Machado de Assis provoque reflexão sobre ausências históricas. “Por que só agora?”, indagou a nova imortal em seu discurso. “Por que 128 anos de espera se tínhamos uma cadeia de tantas outras autoras negras que, com certeza, já teriam capacidade e vontade de estar aqui dentro e ainda não estiveram?”
Gonçalves é autora de “Um defeito de cor”, que acompanha a trajetória de Kehinde, ex-escravizada africana que viveu no Brasil durante a maior parte do século XIX, inspirada em Luiza Mahin, mãe do abolicionista Luiz Gama (1830-1882).
Famosos de volta à Flip
Em sua 23ª edição, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) voltou a ser realizada no inverno, para maior conforto de todos. Com público 10% maior que o do ano anterior e cerca de 34 mil pessoas circulando pelo centro histórico nos dias de evento, a edição ganhou apelo pop ao apostar em autores como Valter Hugo Mãe, Rosa Montero e Sandro Veronesi, todos assediados nas ruas de Paraty. A festa ficou marcada pela combinação de carisma, densidade e posicionamento político.
Leitura de nicho
Em uma edição especial dentro das comemorações do título da Unesco, a Bienal do Livro do Rio confirmou mais uma vez o poder dos novos hábitos de leitura entre os mais jovens. O evento consolidou uma tendência na literatura de entretenimento: o uso de tropes literários como forma dominante de recomendação e descoberta de livros.
No vocabulário das redes sociais e plataformas de leitura, tropes são fórmulas de enredo que ajudam o público a identificar rapidamente o tipo de história que deseja folhear. Pela primeira vez, editoras montaram estandes inteiros dedicados aos tropes e filas se formaram para autores alinhados ao fenômeno. Resultado: outra Bienal de público recorde e forte presença juvenil.
Terapia colorida
Uma década depois da febre que transformou estantes e mesas de centro, os livros de colorir ressurgiram com força em 2025, desta vez embalados pela estética aconchegante, com produtos e narrativas associadas ao aconchego e bem-estar. E também as imagens fofinhas. Essa nova onda dos livros de colorir traz ursinhos, cãezinhos e gatinhos de traços suaves da americana Abbie Gouveia e da russa Aleksandra Bozhbova, que passaram semanas na lista dos mais vendidos. Desta vez, as influências também refletem não apenas uma busca pela desaceleração, mas um afastamento das telas (para crianças e adultos).
Escritores x IA
O clima de tensão entre escritores e os sistemas de inteligência artificial ganhou contornos políticos e judiciais. Eles reclamam que as empresas de tecnologia usam obras protegidas para treinar seus modelos de inteligência artificial sem pedir autorização. Nos Estados Unidos, o best-seller David Baldacci depôs no Congresso relatando o impacto direto da tecnologia sobre sua obra e seu sustento. Ele contou que viu o próprio filho pedir ao ChatGPT que criasse uma trama “no estilo de David Baldacci”.
— Foi como se tivessem encostado um caminhão na minha imaginação e roubado tudo o que eu já criei — disse o autor, que integra o grupo de 17 escritores que processam a OpenAI e a Microsoft por uso indevido de seus livros.
Embora as big techs tenham vencido a maioria dos processos até agora, ações judiciais revelaram que algumas empresas coletaram textos de autores baixando milhões de cópias piratas de livros.
Livro que fez barulho
Entre os fenômenos editoriais de 2025, poucos deram mais o que falar do que “Coisa de rico”, do “antropólogo do luxo” Michel Alcoforado (foto), que ultrapassou a marca de 65 mil cópias vendidas. Com sua observação sociológica acessível e bem-humorada, o livro foge do academicismo e examina in loco a psiquê dos superricos. Convivendo com a crème de la crème da elite brasileira, Alcoforado observa a ostentação e os sinais de status que definem a distinção no país.
Não foram apenas os reles mortais que gostaram do projeto do autor. Segundo ele, até mesmo os super-ricos estão comprando o livro para se reconhecer em suas páginas.
— Na Faria Lima é onde mais compram — disse Alcoforado em entrevista ao GLOBO, em setembro.
Centenário de um mestre
No centenário de seu nascimento, um dos maiores escritores brasileiros do século XX, Rubem Fonseca (1925-2020), ganhou edição com os seus contos completos. O lançamento revelou dois textos inéditos garimpados no arquivo do autor mineiro radicado no Rio, que jogam luz sobre sua formação. Produzidos na década de 1940, quando tinha 20 e poucos anos, "Natal" e "Arinda" são textos típicos de juventude, um balão de ensaio para a estreia triunfal em "Os prisioneiros", 15 anos depois.
Partidas
Luis Fernando Verissimo (1936-2025). O mestre da crônica, que vinha sofrendo com problemas de saúde há mais de dez anos, deixa uma obra marcada pelo humor, pela inteligência e por personagens marcantes, como o Analista de Bagé e o detetive Ed Mort.
Marina Colasanti (1937-2025) e Affonso Romano de Sant’Anna (1937-2025). Com seis décadas de parceria intelectual, eles formavam um dos casais mais emblemáticos da literatura brasileira. Ela partiu em janeiro; ele em março. Venceram prêmios Jabuti e transitaram pela poesia, a crônica e a ficção. Considerada um dos grandes nomes da literatura infantojuvenil brasileira, Marina publicou mais de 70 livros. Affonso foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional e colaborou com alguns dos principais jornais do país.
Heloisa Teixeira (1939-2025). Intelectual central da cultura brasileira, a escritora, crítica e pesquisadora renovou o debate sobre feminismo, juventude, contracultura e poesia. Sua atuação nas universidades, nas políticas culturais e na formação de novas gerações fez dela uma das principais agitadoras de ideias do país, sempre conectando academia, rua e experimentação.
Mario Vargas Llosa (1936-2025). Pontuadas por elementos autobiográficos, a obra do Nobel peruano reflete sobre o exercício da escrita, aborda conflitos históricos e critica a complexa realidade da América Latina, tendo sempre como alvo o poder autoritário.
Dignos de prêmio
Nobel de Literatura. “Mestre do apocalipse” segundo a ensaísta Susan Sontag, o escritor húngaro László Krasznahorkai foi reconhecido pela Academia Sueca. No Brasil, ele é mais conhecido pela obra “Sátántangó”, adaptada para o cinema em 1994 pelo diretor Béla Tarr. O livro apresenta uma aldeia remota e seus habitantes desajustados que esperam por Irimiás, homem misterioso que pode ser tanto profeta quanto o demônio em pessoa. Um novo título do autor,“O retorno do Barão de Wenckheim”, chega ao Brasil mês que vem.
Camões. O mais importante prémio da literatura lusófona foi atribuído este ano à poetisa, romancista e historiadora angolana Ana Paula Tavares, por "sua trajetória fecunda e consistente de criação estética e, em especial, o seu resgate de dignidade da Poesia". É, aliás, nesse registro que o leitor brasileiro pode encontrá-la, com o livro "Amargos como os frutos", que reúne a poesia completa do autor. A obra de Tavares abraça o lirismo íntimo, assim como a reflexão histórica, evocando tradições e narrativas orais da cultura de seu país.
Biblioteca Nacional. O tradicional prêmio da Bn foi para o primeiro volume de “Guerra” , trilogia da paulistana Beatriz Bracher sobre o conflito que opôs a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) ao Paraguai no século XIX. Embora seja descrito pela autora como ficção, “Guerra” é uma colagem de trechos de depoimentos de personagens da campanha militar coletados em livros, periódicos e documentos históricos — os outros dois volumes seguirão o mesmo método.
Prêmio São Paulo. Aos 39 anos, a escritora paulistana Mariana Salomão Carrara se tornou bicampeã do prêmio atribuído pela secretaria de Cultura do governo paulista. Seu “A árvore mais sozinha do mundo”, sobre a rotina de uma família rural, recebeu o troféu da categoria melhor romance do ano de 2024. A ousada narrativa é construída a partir da perspectiva de objetos, incluindo a “árvore-narradora” que dá título ao livro, além de um espelho, uma velha caminhonete e peças de roupa de proteção usadas na lavoura.
Jabuti. O prêmio mais importante da literatura brasileira consagrou o jornalista, biógrafo e escritor Ruy Castro na categoria livro do ano por seu “O ouvidor do Brasil”. Neste trabalho, o autor reúne 99 crônicas que celebram Tom Jobim (1927-1994). Mas, se a principal escolha é dedicada ao maestro que foi um dos criadores da bossa nova, houve espaço para o rock brasileiro: guitarrista dos Titãs e com outros 12 livros lançados, Tony Belloto ganhou o Jabuti na categoria romance literário com “Vento em setembro”.
Matéria na íntegra: https://www.tribunadosertao.com.br/curiosidades/2025/12/06/827958-retrospectiva-2025-rio-virou-vitrine-mundial-do-livro-e-abl-elegeu-sua-primeira-mulher-negra
09/12/2025